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sábado, dezembro 21, 2013

Bola, pipoca e Vade Mecum: novas formas de torcer

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Todo empolgado, o marido leva a esposa para o melhor restaurante da cidade. É a comemoração de aniversário de casamento, e a pompa começa com a escolha do vinho (o melhor da casa, aquele da safra de 1983, que ganhou nota 9,8 da Wine Spectator). “Perfeito para acompanhar uma carne de caça nobre, como o nosso faisão com molho à base de queijo de cabra”, sugere o maître. A mulher, excitada com o festim e o depois, assenta com a cabeça e sorve mais um pouco do excelente vinho tinto.

Na mesma noite da comemoração das bodas do casal, o Fluminense, que havia sido rebaixado à Série B do Brasileirão, fora salvo pelo tribunal do STJD, o que provocou a queda da Portuguesa no lugar do Flu. Sem querer entrar no mérito jurídico envolvendo o caso, a salvação do Fluminense – o time que tem como símbolo uma Cartola, vejam só, além do pó-de-arroz, que novamente foi varrido para baixo do tapete, aliás, um tapetão – nos coloca uma nova forma de torcer. Antes, o pai tentava seduzir o filho a torcer para determinado time, dizendo que o mesmo tinha um excelente goleiro e um centroavante matador, além de um técnico de primeira linha, o que garantiria os bons resultados e, é claro, os títulos. Assim, o filho facilmente escolhia o time do pai. Agora, depois de o Flu ter se safado (pela segunda vez da Série B, lembrando a ascensão quase dantesca de 1996, quando o time das Laranjeiras saiu da C [Inferno] para a A [Paraíso]), o filho vai retrucar ao pai: “Mas quem faz parte da direção jurídica de seu clube? O seu advogado presta serviço para alguma Federação, tipo de Rio ou São Paulo, ou mesmo para a CBF?”  

Boa pergunta. É como se, ao final do jantar, o marido pedisse para falar com o chef para lhe agradecer o prato delicioso e tecer-lhe altos elogios. Ao chegar à mesa, o chef então revelaria, sem nenhuma vergonha: “Agradeço os elogios, senhor, mas o que vocês comeram não foi faisão, mas um pombo muito bem temperado”. Perplexa, a mulher falaria com a voz tremula: “E aquele vinho maravilhoso que tomamos?” O chef diria que não era a safra de 83, mas a de 2003, quando tivemos um verão muito quente e um inverno demasiado seco, deixando os vinhos daquela temporada mais ácidos. Sem cotação na revista especializada.

Com o STJD jogando às claras, às escuras, à meia-luz, no apagar das luzes (bem depois dos 45 do segundo tempo), nossa forma de torcer vai mudar agora: vamos ter que nos fazer acompanhar de uma pipoquinha e do Vade Mecum a cada rodada, sempre buscando formas de não cair, de subir, de deixar o Purgatório de lado. Agora, todas as torcidas (inclusive a do próprio Fluminense, tida como de elite, preferência de intelectuais, artistas e músicos esclarecidos) desconfiam do passado do futebol brasileiro, assim como, diante das virtuais revelações do chef (a cozinha da verdade), contradizendo todo o serviço do maître (a apresentação do que é visto), a mulher desconfiará do jantar, do vinho, da comida rara e cara, dos presentes, das juras de amor, do casamento, enfim. 

Por fim, esta é a segunda vez que o Fluminense vai dever a Série B, e que não tenha a terceira, senão seu plano de saúde será suspenso, pois quando se deve três boletos...  

Yurgel Caldas, professor do Curso de Letras da Universidade Federal do Amapá (Unifap) .

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